
Um detalhe do acordo anunciado no dia 12 por China e Estados Unidos deu esperanças a Lívio Ribeiro, sócio da BRCG Consultoria e pesquisador associado do FGV Ibre. O ex-chefe de estudos econômicos da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, que atuou com foco em comércio exterior em instituições financeiras internacionais avalia que o fato de a negociação ter sido comandada por Scott Bessent, secretário do Tesouro (cargo mais alto da área econômica do governo americano), é um bom sinal por ter colocado à mesa "gente que sabe fazer conta".
Como avalia o acordo entre EUA e China?
Chevou a um ponto em que o comércio entre os dois países, em termos práticos, estava sob embargo. A escalada entre os dias 2 e 10 de abril saiu de controle. Houve erro de avaliação da administração americana ao superestimar a sua capacidade de gerar dor econômica na China e subestimar o ajuste chinês que já ocorria desde 2024 para lidar com cenário mais adverso, interno e externo. O plot twist (reviravolta) da história foi a China retaliar. Era algo que a administração americana claramente não tinha na cabeça, e a imensa maioria dos analistas também não, mas nós tínhamos. Sempre falamos que a China ia demonstrar força, além do que se imaginava, porque estava se preparando para o contencioso há muito tempo, ao menos desde o terceiro trimestre de 2024.
Que sinais havia?
A China adotou políticas fiscais, parafiscais, creditícias e monetárias, desde pelo menos agosto de 2024, com anúncios muito relevantes entre setembro e outubro. Depois da eleição americana, houve novos anúncios. A China já estava criando contenção, as barricadas já estavam sendo elevadas.
Não era só para crescer mais?
Tinha um efeito interno, de dar apoio ao crescimento, mas não é reduzir juro que vai fazer a China crescer, porque o juro já é muito baixo. O país tem dificuldade estrutural de crescimento. Era estratégico criar uma estrutura que permitisse aos bancos entrar de forma mais incisiva no mercado, se fosse necessário. As medidas se propunham a reforçar a economia doméstica, mas também davam respaldo a um eventual tsunami externo.
Foi uma surpresa para os americanos e a maior parte dos analistas o fato de a China ter retaliado.
Nem o círculo de Trump dectectou?
Sim, foi uma surpresa para os americanos e a maior parte dos analistas o fato de a China ter retaliado. E aí era interessante para os dois lados sentarem à mesa tão rápido quanto possível. Na verdade, EUA e China chegaram a um consenso rápido porque as negociações não começaram agora, mas na reunião do FMI (em abril) e não foram tornadas públicas. E foram capitaneadas pelo (Scott) Bessent, secretário do Tesouro. Essa é a informação mais relevante.
Bessent é o adulto na sala?
Exatamente, os mais radicais não participaram. (Stephen) Miran, (chefe do conselho de assessores econômicos), (Howard) Lutnick, (secretário de Comércio), e (Peter) Navarro, (também conselheiro econômico da Casa Branca, considerado o mentor do tarifaço) foram alijados da discussão, o que é muito bom, porque agora está com gente que faz conta. Não tem maluco na discussão. Então, há um acordo temporário, e a situação chinesa se iguala à de outros países que têm 90 dias para fazer negociações bilaterais. Temos 90 dias para entender qual vai ser o novo equilíbrio. Bessent deu uma letra ao dizer que o Acordo Fase 1, de 2020, é um ponto de partida.
O que previa esse acordo?
Levou cerca de sete meses para ser desenhado entre a primeira administração Trump e o governo chinês. Foi assinado no dia 31 de janeiro de 2020, 45 dias antes do lockdown (restrições da pandemia de covid-19). Obviamente, ficou pelo caminho. Previa o aumento das compras chinesas de produtos e serviços americanos. Tinha metas específicas. Algumas eram inexequíveis. Em petróleo e gás, a China tinha de comprar cerca de 80% de tudo que os EUA vendiam, o que não era razoável, teria de abandonar outros mercados.
A China deixa de receber o valor da exportação e começa a ganhar remessa de lucros e dividendos.
Não é inquietante que a base seja um acordo inexequível?
Sim, havia coisas fora da casinha, mas existe espaço para avançar em manufaturas e commodities. A direção é um acordo que reduza o déficit americano em relação à China. Detalhe sórdido: a China aprendeu a triangular comércio. O que vai fazer é mandar via Vietnã e México. Antes, a China ganhava produzindo e exportando. Agora, tem adotado o padrão dos países desenvolvidos. Pode mandar o produto semiacabado para outro país que tenha vantagem tributária, coloque um selo e mande para o destino. A China deixa de receber o valor da exportação e começa a ganhar remessa de lucros e dividendos.
É o que fizeram os EUA, não?
Exato. A forma do debate é muito ingênua. Parece cabeça da década de 1960. A proposta é reindustrializar o país, porque se não tiver emprego industrial não tem produtividade, sem isso não tem classe média pujante e o país está fadado à miséria. Primeiro, é difícil de argumentar que os EUA ficaram mais pobres quando trocaram o Rust Belt (Cinturão da Ferrugem) pelo Vale do Silício. É ao contrário. E se não ter emprego industrial forte fosse um fracasso, Nova Zelândia, Austrália, Holanda e todos os nórdicos seriam países paupérrimos, e não são.
Trump é ingênuo?
Ingênuo, não, mas tem cabeça velha. Trouxe pessoas muito diferentes. No primeiro mandato, tinha o establishment republicano. Agora, trouxe não só os mais radicais do primeiro mandato, como Navarro, mas também Miran e Lutnick, que também têm uma forma muito antiga de entender as relações comerciais.
Culpa do déficit em conta corrente não é do dólar. É de uma economia que gasta muito mais do que consegue produzir.
Há uma tese de que o objetivo seria substituir o acordo de Bretton Woods, que estabilizou a economia depois da Segunda Guerra, por um acordo de Mar-a-Lago. É onde querem chegar?
A ideia é de Miran. O pressuposto é que ter déficit comercial é ruim e é o responsável pelo dólar excessivamente forte. Não é excesso de demanda, não é política fiscal frouxa. Portanto, é preciso enfraquecer. E como faz? Força os parceiros a darem um dólar mais fraco, mantendo a prerrogativa de moeda de reserva, o que é esquisito, porque vai ser uma reserva que perde valor. Envolveria renegociação da dívida, dos Treasuries na mão de estrangeiros. E os EUA mudam seu papel de polícia do mundo, tarifam para extrair negociações comerciais mais vantajosas, o que está ocorrendo, ainda que de forma escalafobética.
Tem como dar certo?
A agenda tem um erro de premissa. A culpa do déficit em conta corrente, que é a transação de bens e serviços entre residentes e não residentes, não é do dólar. É do excesso de demanda agregada. É uma economia que gasta muito mais do que consegue produzir. A forma certa de resolver seria aumentar a poupança. As pessoas têm de consumir menos, o que parece difícil, ou o governo consome menos, com ajuste fiscal. E o ajuste fiscal proposto, ao menos por enquanto, é um não ajuste. Houve uma tentativa de fazer via Doge (Departamento de Eficiência Governamental, comandado por Elon Musk), cujo resultado é uma catástrofe. E o ajuste via receita, taxando os estrangeiros. Lembra um país que a gente conhece. A agenda correta, supondo que ter déficit é um problema, é aumentar a poupança interna de para reduzir a absorção de poupança externa, que é o déficit. Só que esse debate não existe.
A política de Trump não é America First (EUA primeiro), é America Alone (EUA sozinhos).
O acordo reduz a incerteza?
Temos um cenário infinitamente mais nublado do que seria recomendável. Se o principal comprador do mundo está jogando as regras para o alto, as regras só existem no papel. A estrutura da OMC (Organização Mundial do Comércio), as institucionalidades existem, mas se o principal comerciante do mundo não as respeita, é para inglês ver. Colocar o gênio de volta na garrafa vai ser difícil.
A postura dos EUA afastou aliados históricos, como a União Europeia (UE). É outro erro de política?
Volto para o debate do excesso de ideologia. A política de Trump não é America First (EUA primeiro), é America Alone (EUA sozinhos). Não há aliado. O primeiro problema foi criado com Canadá e México, depois com UE, Coreia do Sul. É uma agenda amplamente contrária ao mundo. É xenofóbica. É ideológica, reflete muito a visão do Rust Belt, do vice-presidente J.D. Vance. A tese dele é "temos de amar primeiro a família, depois os concidadãos e, se sobrar tempo, o resto do mundo". É uma visão de que todos são inimigos, todos expoliam os EUA. É muito boba, mas comum em muitas camadas da sociedade americana. Não vê os enormes ganhos que os EUA têm de, por exemplo, ser emissor de uma moeda de reserva. Dá um grau de liberdade que nenhum outro país tem.
É realista a expectativa de que o Brasil possa ganhar com a guerra comercial?
Definitivamente, não. O efeito da macro da bagunça toda, da incerteza, é ruim para todo o mundo. O argumento micro é de que o Brasil poderia ter diferença tarifária favorável agora já nem é mais válida porque está todo mundo no 10%. Depois, nossos problemas de competitividade externa não são resolvidos por um diferencial tarifário para os EUA de 10 ou 15 pontos percentuais. A indústria brasileira perde participação em mercados cativos la fora e encolhe no país porque é pouco produtiva, tem problema tributário, carência de logística e infraestrutura inadequada, tem carência de suprimento contínuo de eletricidade. São problemas estruturais.
Haveria ganhos setoriais?
Sim, algumas culturas do agronegócio podem ganhar espaço, alguns segmentos já hipercompetitivos na indústria alimentícia, de aviação e de partes e peças, como Weg e Randon. Mas a indústria brasileira vai se salvar com tarifas? Não. É inequívoco que o país não ganha. Os segmentos que podem ganhar já são mais produtivos. A tese que o Brasil será beneficiado não faz o menor sentido.
O que se pode esperar nos 90 dias de negociação?
O limite não deve ser levado a ferro e fogo. É um grande jogo de estratégia múltiplo, todas as partes vão olhar o que os outros estão fazendo para tomar suas próprias decisões. A China vai tentar acordos com todos os países com os quais consegue ajustar seu comércio para os EUA, com tônica na triangulação. Não é à toa que o Xi Jinping (presidente da China) fez uma grande rodada de viagens na Ásia e recebeu há dias o presidente Lula. Está cercando.
*Colaborou João Pedro Cecchini