
O embaixador José Alfredo Graça Lima focou sua carreira na diplomacia comercial e nas negociações. Participou da reformulação das regras multilaterais de comércio e da criação da própria Organização Mundial do Comércio (OMC). Em quase 50 anos como diplomata, ocupou diversos cargos no Ministério das Relações Exteriores no Brasil e no exterior. Representou o país em negociações no Mercosul, do Mercosul com a União Europeia e na OMC, e chefiou a representação permanente brasileira junto às comunidades europeias em Bruxelas. Agora, está tão perplexo quanto boa parte da humanidade com a "truculência unilateral" de Donald Trump. Mas como bom negociador, acredita nesse poder e vê nas tentativas de acordo uma esperança.
Qual a sua avaliação dos primeiros cem dias do governo Trump, alguma surpresa?
A primeira impressão, até dos primeiros 10 dias, é a truculência do unilateralismo. O principal parceiro comercial deixa de lado as suas obrigações multilaterais para ameaçar. A China é o alvo principal, mas também todos os demais países que exportam para os EUA, e não são poucos. Os EUA eram um parceiro não apenas confiável, mas também de última instância. Ou seja, todos os países comerciavam com os EUA, o que na verdade era responsável pelo déficit comercial americano, atendendo às necessidades de mercado em expansão. É o que tornava os americanos mais ricos, até porque o déficit comercial era plenamente compensado pelas exportações de serviços. Toda essa lógica era perfeitamente conhecida, mas escapa da compreensão de um presidente populista que fala para os operários de indústrias decadentes.
Os recuos dão sinais de esperança?
Tem uma novidade que aponta para um cenário muito menos pessimista do que se previa, que é a negociação dos acordos bilaterais. É verdade que o bilateralismo não é uma solução satisfatória, em vista, sobretudo, da operacionalidade do sistema multilateral de comércio. Até o momento, o sistema funciona com base no tratamento de nação mais favorecida, o que poderá deixar de acontecer a partir da negociação dos acordos bilaterais, com grande prejuízo para o comércio global. Mas é absolutamente impossível determinar, neste momento, quais serão os termos dos acordos que estão sendo negociados, o que deixa os agentes econômicos incertos. De qualquer maneira, o fato de existir negociação, representando uma tentativa de resposta ao unilateralismo truculento, não deixa de trazer esperança para um comércio menos impedido, com mais fluidez.
O comércio entre o Brasil e a China não vai ser afetado, o que é boa notícia.
O que se pode esperar desses acordos?
Pode haver casos em que se estabeleçam cotas, com comércio administrado, como está sendo buscado (pelo Brasil) para aço e alumínio. De novo, não é o ideal, mas permite que não haja ruptura do comércio. O Brasil é privilegiado no sentido de que uma parte pouco significativa das exportações está integrada a cadeias de valor. Exportamos alimentos, que são parte de um comércio direto. Tenho o sentimento de que os bens perecíveis não devem sofrer barreiras, porque a demanda por alimentos, por produtos agrícolas, é inelástica. Você paga o preço que tiver de pagar. Os consumidores de baixa renda, como sempre, pagam a conta, assim como as indústrias que dependem de insumos e de máquinas a baixo preço.
O Brasil está pronto para aproveitar essa janela de oportunidade?
Vai depender de dois fatores. O primeiro é se o Brasil vai ter oferta exportável para cobrir as necessidades chinesas, que são muito altas. Os chineses compram cerca de 80% da soja que o Brasil produz, mas compram até dos EUA. No passado, os americanos chegaram a um acordo com os chineses para estabelecer metas de comércio para os produtos agrícolas, extremamente sensíveis para os EUA. Tenho certeza de que os agricultores não devem perder em qualquer arranjo que seja feito, e a China é um dos países que está negociando ativamente com os EUA, embora fique um pouco nas entrelinhas. Outro fator são as pressões. Quando entra a política, tudo fica em uma área cinzenta. Os EUA estariam pressionando os países para não importar da China o que a China exportava para os EUA. Existe triangulação em alguns países asiáticos, mas não vejo como pode acontecer no caso do Brasil, até porque temos superávit comercial com a China, o que não é pouca coisa. Muitos produtos chineses continuam sendo objeto de processos antidumping, de medidas compensatórias. Em condições normais, e admito que não estamos em condições normais, o comércio entre o Brasil e a China não vai ser afetado, o que é boa notícia.
A definição de como será o regime comercial dos EUA no futuro é, neste momento, uma obra de ficção.
A tarifa média dos EUA era em torno de 2%. Uma prática de 10% é cinco vezes maior. Há alguma normalidade?
A estatística de 2% é um pouco falaciosa, porque vai depender do produto e dos volumes envolvidos. Em relação a automóveis, por exemplo, a tarifa de importação dos EUA é relativamente baixa em comparação à aplicada no Japão ou na Europa. Mas as tarifas foram negociadas no passado, em pacotes aceitáveis para todos, prevalecendo a regra multilateral. O que me intriga é de que maneira os americanos podem, pelo menos, eliminar a sobretaxa, que é absolutamente ilegal, contabilizando a abertura de mercado dos seus parceiros. O Vietnã tinha, antes da suspensão, tarifa de 46%, uma mais altas. Os vietnamitas já sinalizaram que estão dispostos a abrir o mercado para os EUA, levar as tarifas a zero. Trump diz que só reduzirá a tarifa mediante uma oferta fenomenal. Se a oferta do Vietnã não é fenomenal, não sei o que é. Agora, se o Vietnã vai reduzir ou eliminar a tarifa só para os EUA, é também uma violação, porque outros países não se beneficiarão da medida.
O que isso projeta para o futuro?
A definição de como será o regime comercial dos EUA no futuro é, neste momento, uma obra de ficção. Não tenho a menor ideia de como os acordos serão negociados. Mas existe um precedente. A Lei Smoot-Hawley, quando as tarifas americanas foram elevadas ao ponto mais alto de sua história, em 1930, contribuindo para disseminar e agravar a Grande Depressão, foi mitigada por acordos de reciprocidade bilaterais que os americanos passaram a negociar, inclusive com o Brasil. Mas os acordos tinham tratamento de nação mais favorecida, cláusulas que vieram a ser aproveitadas depois pelo capítulo comercial da Carta de Havana, que se tornou o Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) em 1947. Era um embrião de um sistema multilateral mais aberto, com tarifas mais reduzidas, com perspectivas de crescimento do comércio com redução de barreiras, pelo menos em matéria tarifária.
Os investidores preferem criar cadeias de valor benéficas para todos, menos os desassistidos pela globalização, não por acaso eleitores de Trump.
Tem uma tese sobre a meta de Trump?
Não tenho. A julgar pelo discurso, o que Trump quer é reindustrializar os EUA. Mas as indústrias intensivas em mão de obra estão produzindo muito mais e melhor fora dos EUA. Os EUA não fabricam uma televisão há mais de 50 anos, e por boas razões. Os investidores preferem criar cadeias de valor que são benéficas para todos, menos os desassistidos pela globalização, não por acaso eleitores de Trump.
Trump quer reindustrializar, mas não oferece crédito. Qual a explicação?
Hesito um pouco em usar o termo, sem ofensa nenhuma, mas é um tanto esquizofrênico, mesmo. O presidente pode fazer discursos, mandar recados, fazer ameaças, mas vemos frequentemente o segundo escalão, os secretários de Comércio, do Tesouro, introduzir uma certa racionalidade onde está faltando. Trump também não hesita em voltar atrás, em recuar em muitas decisões tomadas.
Trump vai criar uma nova ordem comercial mundial?
Não vejo assim, porque o mundo já está muito integrado. Haverá, como houve na pandemia, alguns gargalos, mas não ruptura. As cadeias de valor estão bem consolidadas, porque todos os envolvidos estão ganhando. A indústria traz crescimento, mas só o comércio traz riqueza. Não adianta estabelecer uma maneira que não faça o produto circular, vai trazer prejuízo. O déficit comercial dos EUA, por exemplo, teve aumento nos primeiros três meses do ano, porque os importadores anteciparam compras para fazer face ao futuro.
Três países que estão levando vantagem sobre os demais, o próprio Brasil, Reino Unido e Austrália.
Há um prazo para não provocar ruptura nas cadeias de valor?
Diria que o prazo seria dos 90 dias, que se esgota em julho. Mas também não se sabe se todos os acordos serão anunciados ao mesmo tempo, se serão anunciados em sequência, quem vai terminar primeiro. Sabemos de três países que estão levando vantagem sobre os demais, o próprio Brasil, Reino Unido e Austrália, que são os países com tarifas de apenas 10%. A expectativa é de que os 10% caiam, mas tem algo muito mais interessante. Se o Brasil se comprometer a reduzir tarifas para a etanol, para permitir maior acesso, não será ruim para a economia brasileira. Afeta o setor de etanol, porque tem mais concorrência, mas para o consumidor será uma boa notícia. A indústria manufatureira do Brasil é de baixa produtividade, porque se importa pouco. Há muita taxação justamente para proteger essas indústrias de uma concorrência que consideram predatória. Do ponto de vista setorial, não digo que seja crítico, mas é problemático. Mas do ponto de vista da economia como um todo, é bom. É preciso reconhecer que o Brasil é um país fechado. Sei que é politicamente improvável que o Brasil reduza tarifa, mas está na hora de ser revisto. E essa talvez seja uma oportunidade para que aconteça com um custo político reduzido.
Dada a debilidade da OMC, violações às regras significam algo na prática?
Significan, sim. O Gatt continua sendo a constituição do comércio internacional. Pode ser violado, como está sendo, mas continua existindo. A OMC como organização ainda serve como foro de discussões. A ausência do órgão de apelação gera certo incentivo a medidas unilaterais. Vai à consulta, vai a panel (espécie de julgamento), tem decisão, mas sem determinação do órgão de apelação, o país fica livre para não cumprir a determinação. É ruim. Não quer dizer que o sistema esteja comprometido, ou que a organização tenha se tornado irrelevante. Mais de 80% do comércio internacional é realizado ao abrigo do tratamento de nação mais favorecida. Ou seja, o tratamento tarifária que o Brasil aplica para um país é extensivo para todos os demais países. É a coluna-mestra do sistema. As exceções ao sistema são os acordos regionais que constituem exceção do tratamento de nação mais favorecida, mas que são menos de 20% do comércio internacional.