
Agora que a medicina alterou as classificações do que seria a pressão recomendável, criando o pré-hipertenso – que se junta ao pré-diabético –, não seria a hora de criarmos o pré-hipocondríaco? No caso, seria o sujeito que “ainda” não se preocupa com doenças imaginárias. Outra dúvida: quem está classificado antes do pré-hipertenso seria o pré-pré-hipertenso?
O conceito de pré-hipertensão fornece uma identidade ao sujeito. Isso não é o mesmo que dizer que alguém está em uma área de risco e seria preciso ter mais atenção e mudar de hábitos. Para persuadir alguém, dar uma identidade é mais eficaz, mas é preciso tudo isso para quem ainda não apresenta sintomas?
Vamos deixar claro o óbvio: na saúde a prevenção é sempre o melhor caminho. Ainda, acredito que a medicina deva ter boas razões clínicas para fazer o alerta que fez nesse caso. Meu ponto é o modo como isso chega ao público. Não é de hoje que vem sendo construída uma lógica onde é preciso estar sempre atento, a doença espreita, só o espartano raiz se salvaria. Psicologia básica: quando nada parece bom suficiente, quando a régua é muito alta, as pessoas entram no modo foda-se.
Vivemos com regulamentações excessivas. Não é só o Estado que regra muito, o espírito do nosso tempo assim exige. Hoje tudo teria o jeito certo. Podemos ser julgados até por como cuidamos do nosso pet. No julgamento das redes sociais as pessoas não erram, elas cometem crimes, não há mais meio termo. Tudo é decisivo em um nível insuportável.
Creditamos na conta da ignorância a recusa às vacinas, os suplementos mágicos, os tratamentos alternativos milagrosos, os influencers falando bobagem sobre saúde, e outros terraplanismos do gênero. A ignorância é parte da verdade, a outra parte surge como recusa da hiper-regulamentação e hipervigilância a que estamos submetidos. E aqui meu receio: que a medicina possa ser percebida ainda mais como castradora e não libertadora.
Como estamos envolvidos num ethos em que não se sabe o que é uma boa vida, trocamos a sua busca por uma longa vida. Nesse caminho, a saúde deixaria de ser um meio para vivermos bem e tornaria-se um fim em si mesmo. Dessa forma, vida seria apenas a fuga da morte.



