
Leão XIV terá um grande desafio, substituir Francisco, um papa carismático acima da média. Gostei da sua indicação por ele ser agostiniano. Pertencer a essa ordem marca diferença num ponto central: a definição do mal.
A obra de Santo Agostinho é lembrada pela luta contra o maniqueísmo — a propósito, infelizmente, até hoje entranhado no cristianismo. Ele mesmo fora um adepto de Maniqueu e, depois, o seu maior crítico. No maniqueísmo, o bem (luz, Deus e espírito) e o mal (trevas, diabo e matéria) seriam princípios eternos em conflito.
Para Agostinho, o mal não é uma essência, o mal é apenas a privação do bem. Uma privação ativa que corrói a virtude. Essa visão moldou a teologia cristã posterior. Esse princípio contraria a ideia do demônio como figura e instrumento da maldade, quase um deus do mal. O santo sublinha que a crença no demônio nos exime da responsabilidade pelos nossos atos. Crendo nos demônio, pode se dizer que fulano não queria fazer algo errado, mas o diabo o tentou tanto, que ele cedeu.
No raciocínio maniqueísta o mal é intrinsicamente ligado a algo ou alguém, portanto só a eliminação da fonte do mal resolveria o problema. Na prática, só matando as pessoas “do mal” ou destruindo seus livros e símbolos.
É possível traçar um paralelo entre a concepção de Santo Agostinho e a da Hannah Arendt pois os dois pensam o mal como uma ausência. Para a autora, o mal surge de uma passividade intelectual: a incapacidade de julgar o que se faz. O mal que vem da obediência cega a ordens ou ideologias, ou ligado à irreflexão dentro das estruturas burocráticas.
Para Santo Agostinho o pecado é fruto do livre arbítrio quando o sujeito escolhe a facilidade de bens menores, não nobres. Para Hannah Arendt, a banalidade do mal revela falta de autonomia moral, quando a consciência está alienada. De certa forma, Arendt seculariza a tese agostiniana. No caso, o “bem” negado não é mais Deus, mas a dignidade humana e a capacidade de julgar.
Será que um dia aposentaremos o diabo como representante do mal? Pararemos de usá-lo para esconder a nossa crueldade. Afinal, invocamos o demônio para culpá-lo por nossas faltas e para parecermos mais anjos do que somos.