
Há uns anos, uma colega, editora-chefe de um jornal no norte da Suécia, me encarou com espanto quando contei que, diante da previsão de neve, onde eu vivia as TVs enviavam repórteres às regiões montanhosas para transmitirem a chegada dos flocos. Pelo seu semblante, eu era doido ou mentiroso. Antes que a credibilidade da imprensa brasileira perdesse pontos na Suécia, comparei a neve no Sul do Brasil às ocasiões em que os termômetros batiam os 30ºC na cidade dela. Lá, o calor era um assunto e tanto. Aqui, essa temperatura não valeria uma nota de pé de página.
O nosso fascínio pela neve reside neste princípio básico. O que é banal a gente despreza. A raridade é que chama atenção. O divertido frenesi quando despontam previsões de neve é daquelas coisas que alimentam conversas e nos fazem imaginar, um tanto equivocadamente, aliás, mais próximos de países de primeiro mundo. Se neve e frio fossem sinônimos de desenvolvimento, Mongólia e Afeganistão, ressalve-se, rivalizariam com Luxemburgo.
Onde neva muito ela só é benquista nas estações de esqui. Aeroportos e estradas fechadas são um tormento, e um perigo. Mas, por aqui, essa é uma das únicas excepcionalidades meteorológicas que, no lugar de amargura, nos trazem boas recordações e alentam os negócios. Pelo exotismo, neve no Brasil é bem mais interessante que em outras paragens. Eu, que já me enfiei em frias da Antártica à Sibéria no inverno, guardo a nevasca de 4 de junho de 1988 em São José dos Ausentes no topo do arquivo da memória. Lembro a data de cabeça porque o deputado José Antônio Daudt foi morto na noite daquele dia.
Na manhã do sábado do crime mais rumoroso da história gaúcha, eu estava de plantão na redação de Zero Hora e fui despachado para Vacaria, onde havia relatos de neve. Quando a nossa equipe chegou por lá, nem mais sinal. Começamos então uma caçada. Tocamos para Bom Jesus, onde os flocos eram abundantes, mas não se acumulavam no solo.
Em Bom Jesus, nosso Golzinho foi abalroado por um Fusca em que o limpador não dava conta dos flocos. Amarramos a porta e decidimos seguir para um lugarejo do qual quase ninguém ouvira falar. No então distrito de São José dos Ausentes, o vento zunia e a neve caía como poucas vezes eu testemunhara no Exterior. Sem sinal de hotel ou pensão, nos esquentamos em uma bodega e dormimos numa casinha que se abriu para ZH.
A nevasca entrou pela madrugada. No domingo de manhã, enquanto ouvíamos pelo rádio do carro os relatos sobre a morte de Daudt, atolávamos na neve. Mesmo com todo o frisson sobre o crime, cavei duas páginas de ZH para a borrasca — a primeira vez que usei a palavra em uma reportagem. São José dos Ausentes entrava definitivamente para o mapa do fascínio pela neve no Brasil.