
"Não sei nem se acredito na vida depois da morte! Acho que acredito na morte durante a vida." (Groucho Marx)
A consciência permanente da finitude que acompanha a vida diária dos candidatos ao transplante identifica a incrível gama de materiais de que somos feitos. Reconhecido como um avanço espetacular da ciência médica, o transplante se cerca de pré-requisitos rígidos, técnicos e pessoais.
Como não há prazos estipulados, a ansiedade, nua de certezas, se multiplica nas infindáveis madrugadas insones em que a vida se arrasta, tendo como único suporte um frágil fio de esperança. Para sobreviver a essa seleção, exige-se uma inabalável determinação de viver, na qual amor para dar e amor para receber são essenciais.
Os exemplos de bravura se repetem, como na odisseia compartilhada por Argeu e Cipriano, dois parceiros na doença que destruiu os seus pulmões e no destino que os reuniu no mesmo quarto de hospital, com um propósito idêntico: esperar.
Eram iguais na idade, na insuficiência respiratória, no tamanho do tórax e no tipo sanguíneo. E diferentes na necessidade do lado a ser transplantado e na cor da pele. Enquanto o Argeu necessitava de um pulmão direito, Cipriano carecia de um pulmão esquerdo, e era preto retinto. A justa expectativa era de que ambos pudessem ser transplantados com os dois pulmões de um mesmo doador, tão perfeita era a simetria de exigências e necessidades.
Depois de nove meses compartilhando alojamento, medo e esperança, foram informados que surgira um doador compatível. A comemoração durou pouco porque logo depois uma informação complementar dava conta de que apenas o Argeu poderia ser transplantado, porque o pulmão esquerdo, com um grande hematoma, não tinha condições de ser utilizado.
Chamado para iniciar o transplante do Argeu, tive que abandonar o Cipriano e a sua dor, sem ter conseguido interromper o seu choro
Foi uma experiência inesquecível o convívio com o desamparo, a tristeza e a reativação dos fantasmas atávicos da discriminação racial, que retumbava no silêncio constrito do Cipriano, que não moveu um músculo da face ouvindo, outra vez, as explicações da inviabilidade do seu transplante. Como se a morte da esperança dele tivesse começado pelo ouvido. E então ele começou a chorar. Chamado para iniciar o transplante do Argeu, tive que abandonar o Cipriano e a sua dor, sem ter conseguido interromper o seu choro.
Quando voltei, antes que a madrugada tivesse terminado, trazia a notícia alvissareira de que um outro doador, recém anunciado, tinha as mesmas características exigidas. Enquanto eu explicava a sorte que tivéramos, Cipriano ria e chorava, e com o dorso da mão secava as lágrimas que escorriam de seu rosto. Já deitado na maca que o levaria ao bloco cirúrgico, pediu que esperassem um pouco. E então, fez um pedido inesquecível:
"Doutor, o senhor não imagina o quanto eu sofri nesses nove meses vendo a minha esperança encolher cada dia e toda noite lembrar que a minha vida dependia da bondade de uma família, que nem sabia que eu existia. Então, eu queria lhe pedir que, se o meu transplante não der certo, o senhor use todos os meus órgãos para transplantar em outras pessoas, porque eu não quero que mais ninguém passe o que eu passei. Era só isso, agora já posso ir".
Nos 35 anos que se seguiram, nunca encontrei ninguém com grandeza tamanha que no momento de máxima aflição individual fosse capaz de pensar em outras pessoas, que igualmente nunca saberiam que ele existiu, nem teriam qualquer chance de lhe agradecer.