
A prática médica, tão estimulante e desafiadora, encontra na maneira de expressar gratidão um compartimento diferenciado. Desde o estímulo automático e previsível ao singelo muito obrigado quando tudo deu certo diante de uma situação banal, onde não se esperava outro desfecho, até a extraordinária exigência emocional para recrutar os sentimentos mais nobres, e com eles reconhecer o esforço despendido, mesmo quando tudo deu errado.
Esta lição aprendi com o João Batista, um paciente com enfisema pulmonar severo e que, depois de transplantado, viveu um mês de encantamento, quando pôde cantar e dançar, duas de suas paixões. E então, o imponderável prevaleceu, e uma infecção fúngica somada à rejeição aguda intensa o trouxeram de volta ao hospital, onde morreu em 48 horas.
Dois meses depois, uma filha muito querida dele voltou para agradecer e cumprir um pedido do pai, quando se deu conta de que ia morrer: "Aconteça o que acontecer, diga ao doutor que eu faria tudo outra vez por aquelas três semanas em que respirei feito gente". E a filha, mesmo tendo vivido a situação mais adversa, que é a reversão de expectativa, agora parecia aliviada, porque naquele pedido o pai, generosamente, oferecera um sentido ao seu sofrimento.
Sei, de experiência própria, que no início da vida profissional dependemos muito mais das manifestações de reconhecimento dos beneficiados para construirmos a sensação de segurança, que depende da reafirmação da qualidade do nosso trabalho. E então os anos passam, e um dia percebemos que mais importante do que os comentários alheios, elogiosos ou depreciativos, é a nossa própria consciência de termos feito o melhor que podíamos. E isso se chama maturidade profissional.
Entretanto, para mostrar que nunca estamos completamente prontos, independentemente do quanto tenhamos vivido, quando menos esperamos somos assaltados por gestos ou atitudes surpreendentes.
Mais importante do que os comentários alheios é a consciência de termos feito o melhor.
Foi a sensação confortadora que tive quando ouvi o relato do Ivan Antonello, meu modelo de humanismo médico, reportando em magnífica aula na última sessão do Curso A Medicina da Pessoa a experiência com o Cícero, um paciente de cerca de 60 anos com falência renal, com evolução desfavorável de uma neoplasia com má resposta à quimioterapia. Se tornaram amigos e, como costuma ocorrer quando o paciente percebe que está evoluindo para a morte, falavam de outras coisas, evitando comentários sobre a doença.
E então, às três horas de uma madrugada de inverno, chamaram-no ao hospital porque um paciente morrera. Era o Cícero, uma morte previsível, ainda que não numa madrugada tão fria. A explicação para o chamado fora o desentendimento da família com o plantonista que devia atestar o óbito. Sem alternativas, o Ivan foi ao hospital, e então um filho justificou a chamada, com um pedido do pai: "Quando eu morrer, não permita que outro médico, que não o doutor Ivan, assine meu atestado de óbito. Eu quero homenageá-lo".
Depois de uma conversa serena com a família, onde ficou claro que a gratidão vencera a morte, ele voltou para casa, com a sensação de que "aquela morte não me pesou, não sofri com ela, e eu estava feliz, porque ele continuava comigo!".
Aos comentários dos alunos, encantados com essa história, e de como seria possível construir uma relação médico/paciente tão densa, meu conselho: "Se exponham aos sentimentos dos pacientes em sofrimento, e ficarão impressionados com a grandeza das reações que só a gratidão, na sua expressão mais pura, é capaz de despertar".