
"O Bem e o Mal não existem em si mesmos. Um é apenas a ausência do outro." (José Saramago em O Evangelho Segundo Jesus Cristo)
A indignação humana se parece muito com uma represa, sempre ameaçando romper a barragem que a sustenta. Acesse uma rede social e coloque lá uma história que mexeu com os sentimentos de alguém e prepare-se para a reação dos leitores. Como todo mundo quer participar, e provavelmente a solidão é o gatilho mais importante para colocar no debate o desocupado solitário, as respostas serão instantâneas, ainda que movidas por razões diferentes.
Se o estímulo foi por uma coisa boa, dessas que dão aos otimistas apressados a sensação espontânea de que nem tudo está perdido, os comentários serão pífios e burocráticos. Mas se resultou de alguma mágoa ou ressentimento, você logo descobrirá a quantidade de sentimentos inferiores reprimidos, à espera de que alguém venha solidariamente resgatá-los.
Depois que publiquei uma crônica que relatava a experiência de um médico velhinho, que passou a vida cuidando das pessoas com carinho, não porque quisesse impressionar ninguém, mas porque não conseguia ser de outro jeito, e que, quando adoeceu, provou o amargo do atendimento despersonalizado, as redes sociais abriram as comportas da indignação e choveram relatos semelhantes em indiferença, alienação e rigidez afetiva.
Uma avó foi levada às pressas para a emergência de um grande hospital e deixada com a tradicional camisola, esperando por um exame. Sempre friorenta, reclamou:
— Moça, eu vou pegar uma pneumonia aqui!
— Não, vovó, o que a senhora tinha que pegar já pegou! — respondeu uma atendente apressada, que provavelmente nem ouviu a reclamação (e se tivesse ouvido, que diferença faria?).
— Escuta, minha filha, eu sei que estou velhinha, mas não te esqueças que eu ainda sou um ser humano!
A indignação humana se parece muito com uma represa, sempre ameaçando romper a barragem que a sustenta
Em outro relato, uma paciente, grande fumante, com câncer de pulmão, internou com a expectativa de que pudesse ser operada, porque ouvira que a maioria dos sobreviventes estavam entre os casos cirúrgicos. Ao final da avaliação, foi informada de que o tratamento seria feito com quimioterapia que, felizmente, naquele tipo histológico, funcionava muito bem. Mais tarde foi encontrada aos prantos. Tudo porque um estagiário, em provável liberdade condicional, passou para vê-la, resolveu testar as informações. Ela perguntou:
— Meu doutorzinho, meu tumor é muito ruim?
Ele respondeu:
— Do que eu aprendi até agora, parece que é o pior.
Uma terceira história: um homem de barba muito branca, com um tumor de pleura que lhe invadia as costelas, continuava gemente depois do analgésico e seguia implorando por mais. A atendente, chateada com a insistência, foi definitiva:
— O senhor já recebeu tudo o que estava prescrito. E vou lhe contar um segredo que aprendi: gemido não é analgésico!
O mais triste é que oferecer a esse trio um curso intensivo focado em empatia e compaixão seria inútil. Quando essas virtudes, lá atrás, foram excluídas do DNA, não há manipulação genética que conserte.