
Tornou-se um mandamento religioso, daqueles que não podem ser discutidos em nenhuma circunstância, acreditar que houve uma tentativa de “golpe armado” no Brasil, entre novembro de 2022 e janeiro de 2023. Na verdade, trata-se de um “combo”. Inclui, com a proposição original, as crenças de que o golpe foi orientado por Jair Bolsonaro, que a polícia e a PGR reuniram provas “robustas” contra os acusados e que eles estão recebendo o benefício de um julgamento imparcial, técnico e rigorosamente subordinado ao que está na lei.
O problema insanável disso tudo é que o enredo oficial não tem nada a ver com a vida real — trata-se de uma questão estritamente de fé. É vetada a apresentação de fatos, ou o exame de realidades materiais. Só existe a obrigação de acreditar, como o Corão exige que um muçulmano acredite que Alá é o único Deus e que Maomé é o seu profeta. Quem duvidar, fizer perguntas ou recorrer à lógica fica automaticamente fichado como infiel. No caso do “golpe”, torna-se de imediato um golpista, extremista de direita e até mesmo bolsonarista.
O problema insanável disso tudo é que o enredo oficial não tem nada a ver com a vida real — trata-se de uma questão estritamente de fé
Nada mais natural, portanto, que muito pouca gente se anime a levantar a questão essencial: “Se há crime, onde estão as provas?”. Por “provas”, aqui, entenda-se provas de verdade, tais como seriam levadas a sério num Tribunal de Justiça de qualquer país civilizado do mundo. É algo que não tem nada a ver com o patético amontoado de suposições, fantasias e disparates que compõe as 900 páginas do relatório de acusação da Polícia Federal e a sua aceitação passiva, com casca e tudo, pela PGR.
Se não há provas — e ninguém até agora, após dois anos inteiros de investigação e dezenas de milhões investidos na busca de culpas, apresentou uma única prova objetiva de nada —, também não há julgamento. O que há é um embuste no qual os réus já estão condenados antes da sentença, e não existe, na prática, o direito de defesa. O que há é uma mentirada em que as razões dos advogados não são jamais levadas em conta, seja lá quais forem, os juízes antecipam que os réus são culpados e a mídia mostra como se fosse um julgamento genuíno.
Nada será suficiente para relatar a real extensão dessa infâmia — nossa versão jurídica do clássico Heart of Darkness descrito no romance de Conrad. Estamos em pleno coração da treva, e a cada dia de julgamento fica mais óbvio, perante o mundo inteiro, que o STF enterrou o Brasil na barbárie legal. Estamos de volta à escuridão dos Processos de Moscou, das fogueiras da Inquisição e das “Provas de Deus”, em que o acusado tinha de provar a sua inocência — com o aperfeiçoamento de que, na farsa de Brasília, os réus provam que não fizeram nada, e os juízes mandam que calem a boca.