Na última quinta-feira, milhares de pessoas marcharam pelas ruas de São Paulo na tradicional Marcha para Jesus. Uma multidão de fé, mas também de muita mensagem. Porque há ali algo tão importante quanto a religião: há um grito social, uma afirmação de identidade, uma rejeição explícita ao papel que boa parte da elite política e cultural tem reservado aos evangélicos nas últimas décadas.
Durante muito tempo, o discurso dominante foi o da caricatura: o evangélico como ignorante, manipulado, instrumento de pastores ambiciosos. O voto evangélico como voto comprado, voto cego, voto acrítico. A religião como obstáculo ao progresso.
Lula, que se orgulhava de ter o povo na veia, hoje precisa de intermediários com luvas de pelica para falar com um terço dele
Mas esse olhar reducionista criou o que estamos vendo hoje: um abismo. E o evento desta semana não deixa dúvida sobre quem está de cada lado.
De acordo com um estudo da Mar Asset Management, mais de 35% da população brasileira será evangélica no ano que vem. Em 2022, eram 32%. Para o leitor entender a magnitude dessa informação, apenas essa diferença teria feito Lula perder a eleição que o levou ao Alvorada pela terceira vez.
O governo Lula, sabidamente desconectado dessa realidade, enviou um representante à Marcha. Só que esse representante — o advogado-geral da União, Jorge Messias — não citou o nome do presidente uma única vez em sua fala. Apostou no seguro e pediu salva de palmas para Jesus Cristo. É como se o Planalto estivesse presente apenas para marcar ponto, mas sem coragem de assumir a própria identidade. Lula, que se orgulhava de ter o povo na veia, hoje precisa de intermediários com luvas de pelica para falar com um terço dele.
Do outro lado, Tarcísio de Freitas. O governador de São Paulo subiu ao palco, foi ovacionado, cantou louvor envolto em uma bandeira de Israel e saiu de lá maior do que entrou. Não por prometer mundos e fundos, mas por estar presente, por não parecer constrangido, por falar com aquele público sem precisar de tradutor. Por respeitá-los.
Em política, às vezes, só isso já basta.
As milhares de bandeiras de Israel no meio do povo são símbolo, não acaso. Há, entre evangélicos e judeus, uma identificação profunda que vai além dos textos sagrados: ambos sabem o que é ser alvo de preconceito velado, de riso condescendente, de tolerância a contragosto. São identidades religiosas tratadas com desconfiança por quem prega tolerância só quando convém, só em ano eleitoral. Apenas num evento evangélico o presidente da Conib, Claudio Lottenberg, poderia discursar sem ser hostilizado, por exemplo.
A Marcha para Jesus foi um evento religioso, claro. Mas foi também um ensaio do Brasil que está por vir. Um país mais conservador nos valores, mais exigente na fé, mais atento aos sinais de quem o escuta — e de quem finge que escuta.