
Eu já havia corrido três vezes a maratona de Berlim. Das 26 que completei, a última, em setembro, foi a que mais me deu prazer. Berlim é uma cidade instigante, capital intelectual de uma cultura que deu ao mundo músicos, escritores, filósofos, pintores, matemáticos e hordas de cientistas que revolucionaram as artes e o conhecimento científico. Além de tudo, foi palco das maiores tragédias do século 20.
Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, no Brás, bairro operário de São Paulo, passei os primeiros 10 anos entre imigrantes italianos, portugueses e espanhóis que fugiam da guerra e da fome, em busca de paz e trabalho nas fábricas da vizinhança. Morávamos em habitações coletivas, com os quartos dispostos ao longo do corredor de entrada, separados das cozinhas, do tanque, do banheiro comunitário e dos varais com roupas penduradas.
Depois do jantar, quando as cadeiras vinham para o lado de fora, eu sentava na calçada para ouvir as conversas dos homens. Minha imaginação infantil foi povoada por bombardeios, baionetas corpo a corpo, saraivada de balas, Hitler, nazismo, fascistas, Mussolini enforcado. Como podiam se queixar de saudades da terra natal, cenário daquelas atrocidades?
É um esporte democrático: todos irão até o limite das forças.
DRAUZIO VARELLA
Um muro separava dois mundos
Quando visitei Berlim pela primeira vez, era uma cidade com um muro que separava dois mundos: o ocidental, sob a jurisdição de americanos, franceses e ingleses, e o oriental, comandado pela antiga União Soviética. As paredes da cidade inteira exibiam buracos de bala.
A pretensão de correr 42 km aos 82 anos pode sugerir insanidade mental. A julgar pelos conselhos dos meus familiares, dos amigos e das pessoas que respeito pela sensatez, talvez seja, mesmo. Por outro lado, minha geração está diante de uma expectativa de vida com a qual jamais sonharam nossos antepassados. Havemos de aceitar os limites impostos a eles?
Maratonas exigem genética favorável e meses de treinamento. Para quem trabalha muito, a programação requer acordar às cinco da manhã e privar o corpo do que ele mais deseja: ficar na cama, considera violência sair correndo nessa hora. Quem diz o contrário, que desperta disposto a correr, pedalar, nadar, é mentiroso, fala apenas para humilhar os circunstantes, seres normais que acordam mortos de preguiça.
Por outro lado, a disciplina para cumprir meses de treinamento impõe um estilo de vida com hábitos que nos fazem bem: voltar para casa mais cedo, cuidar do sono, não exagerar na bebida, não fumar de jeito nenhum e não comer tudo o que nos oferecem.
A última maratona da vida?
Desta vez, voltei a escolher Berlim pelo significado e porque talvez fosse a última da vida. Na minha idade, comprar pão na padaria da esquina tem chance de ser a derradeira aventura.
Comecei a prova devagar: corredores experientes tomam cuidado com os 10 km iniciais, é preciso refrear o ímpeto de disparar na frente dos outros. Maratonas são provas para mulheres e homens racionais que a todo instante avaliam a energia já dispendida e as reservas para chegar ao fim. Descompassos mínimos podem levar à exaustão precoce ou provocar lesões.
É um esporte democrático: do primeiro ao último colocado, todos irão até o limite das forças. Só para viver a explosão de alegria, a paz e a felicidade que se instala no espírito humano, ao cruzar a linha de chegada.
Num ritmo compassado, pude admirar a arquitetura, os prédios com fachadas em linhas verticais, o traçado das avenidas, as árvores, os parques, os museus e o vaivém ininterrupto das bicicletas que fazem a alegria da cidade. No quilômetro 18, uma surpresa deliciosa: minhas netas me esperavam. Entre abraços e beijos, a mais velha se espantou: "Vô, como você está bem". Acreditei, é assim me sentia, mas restavam 24 km.
Parar ou não parar? Eis a questão
No quilômetro 25, entretanto, senti uma fisgada na articulação coxofemural esquerda, semelhante à que ocorrera num treino anterior. Reduzi a velocidade até a dor passar. Um pouco à frente, voltou mais forte; comecei a andar, melhorou, mas piorou em seguida. Tenho medo de dores nas juntas, são elas que tiram os corredores das pistas, muitas vezes para sempre.
Nas imediações do quilômetro 30, senti que a dor estava mais constante e tive medo de que alguma sequela acabasse com minha carreira. Tomei água e fiz um alongamento no meio fio. Pouco adiantou. Mesmo quieto, sem me mover, a dor persistia. Decisão amarga, só faltavam 12 km.
Parar ou não parar, eis a questão, diria o poeta. Pela primeira vez na vida, abandonei a prova.



