Há motivos para festejar a chegada de 2021. Não, prezada leitora, não sou otimista alienado nem costumo escrever sob os efeitos do álcool ou de qualquer alucinógeno.
A primeira razão para comemorarmos é estarmos vivos. Acha pouco? 200 mil brasileiros não tiveram a mesma sorte, muitos dos quais com idades próximas à nossa, fatores de risco e estilo de vida semelhantes.
A segunda é a chegada da vacina que no início da pandemia não passava de um sonho.
O que acontecerá no ano que se inicia?
Hoje, olhamos para nossos antepassados com desprezo. A mesma indignação revoltará os jovens das próximas gerações.
Tudo indica que a epidemia brasileira continuará fora de controle por muitos meses. O impacto da vacinação será insuficiente para o retorno à rotina de antes, até que a porcentagem de vacinados atinja 80% ou mais da população, como indicam os estudos mais recentes sobre a imunidade coletiva a esse coronavírus.
A tarefa de imunizar mais de 160 milhões de brasileiros não seria trivial, ainda que já tivéssemos contratado as 320 milhões de doses necessárias. Nos passos trôpegos em que andamos, quanto tempo levará?
Da mesma forma, nada faz crer que o governo federal deixe de ser inimigo feroz das medidas preventivas indicadas pelos especialistas do mundo inteiro.
De onde, então, viria meu otimismo, estimado leitor?
Vem dos ganhos sociais. O SUS deu provas de que é capaz de se reinventar quando existe vontade política. As demonstrações de solidariedade das pessoas e da iniciativa privada com os estratos mais desassistidos da população têm sido inúmeras, até surpreendentes numa sociedade egocêntrica, insensível ao sofrimento alheio como a nossa, em que o conceito de comunidade é uma abstração.
Emergiremos dessa epidemia mais preparados para enfrentar a próxima, mais conscientes de que governantes irresponsáveis podem provocar desastres, de que não devemos esperar que os governos resolvam todos os problemas sem nossa participação e, acima de tudo, convencidos da imoralidade da desigualdade social que nos tornou um dos países mais violentos do mundo.
Na história da humanidade, guerras e epidemias, ao lado das iniquidades impostas, catalisaram progressos científicos, avanços tecnológicos e aceleraram transformações sociais que teriam levado décadas para acontecer.
Nos últimos 10 mil anos, a humanidade conviveu com a escravidão. Egípcios, gregos, romanos e outros povos guerreavam para roubar riquezas, expandir territórios e aprisionar escravos para assegurar os privilégios de seus cidadãos bem nascidos. Mais tarde, o colonialismo não faria diferente: sequestraria indígenas e africanos de pele preta para escravizá-los em países como o Brasil, o último a declarar o fim desse crime inominável. Não custa lembrar que a lei Aurea foi assinada há apenas 142 anos (meus avós já tinham nascido).
Hoje, olhamos para nossos antepassados com desprezo: como compactuavam com realidade tão ignóbil?
A mesma indignação revoltará os jovens das próximas gerações. Perguntarão como conseguíamos viver num dos países mais desiguais, sem lutar por uma distribuição de renda menos perversa? Como permitíamos que os 10% mais ricos ficassem com 43% dos rendimentos per capita, enquanto aos 10% mais pobres coubesse 0,8%, ou seja, 53 vezes menos?
Seremos desprezados por eles como o foram os senhores de escravos e suas legiões de capitães de mato, encarregados de perseguir os que ousavam ir atrás da liberdade.
A pandemia nos ensina que nenhum de nós estará seguro enquanto houver brasileiros infectados. Portanto, lavar as mãos, usar máscara e evitar aglomerações são medidas que continuarão necessárias durante o ano de 2021, com grande probabilidade de invadir 2022.
Nem a vacinação nos livrará desses cuidados. Primeiro, porque nenhum imunizante protegerá 100% dos que o receberem, depois porque mesmo vacinados e protegidos poderemos adquirir o vírus sem ficar doentes, mas carregá-lo em nossas mucosas para infectar familiares e disseminá-lo nas andanças pela comunidade.
Apesar de nos chocarmos com a inconsequência estúpida dos que se aglomeram sem máscara em festas e bares, insensíveis à possibilidade de infectar os pais e os avós, não devemos esquecer que eles representam a minoria dos brasileiros. A maioria é formada por pessoas conscientes, que não querem correr risco de pegar o vírus e muito menos de transmiti-lo para a família e a sociedade.