
Na residência dos meus avós em Guaporé, toda de madeira, havia uma sidra na estante, no móvel da televisão.
Uma sidra fechada, reservada para uma ocasião especial.
Ficávamos intrigados. Eles jamais usavam a garrafa, numa existência em suspenso.
Mesmo com aniversário, promoção, nascimento de primos, ela seguia intocada lá. Coisa alguma se tornava pretexto para tirar a rolha. Sequer a aposentadoria deles.
Será que nenhuma comemoração se mostrava definitiva o bastante para merecer o brinde? Será que os avós aguardavam um momento ideal que nunca chegaria? Vinham desperdiçando o melhor do presente?
O gesto de conservação me causou estranheza diante dos hábitos familiares perdulários, já que meus pais consumiam vinhos sem pudor nem compaixão. Nenhuma relíquia sobrevivia na adega.
Não era o caso de um champanhe chique, caro, até porque seria inacessível a quem vivia na simplicidade entre galinhas, achas de lenha e horta.
Tratava-se de uma garrafa honesta, pacata, dada por amigos e elevada ao céu das expectativas.
A vó, sempre que lustrava os móveis e o piso, aplicava óleo de peroba com um paninho na sidra. A fragrância me trazia conforto, lembrava que eu estava de férias no interior.
Existia, no rótulo, o desenho de uma maçã, espécie de Apple da nossa vida analógica.
Qualquer dia poderia ser o dia ilustre da revelação daquele misterioso conteúdo. Não sabia o que desencadearia a festa. Os requisitos permaneciam anônimos e inverossímeis.
Eu, menino, esperava a abertura do embrulho como se fosse Natal, fiel incondicional ao milagre.
Logo quando me acordava no meu verdadeiro Sítio do Pica-Pau Amarelo, corria para ver se os avós tinham feito a bendita celebração.
Nada, nadinha, por vários verões. A iguaria resistiu em seu lugar de honra, como um troféu do casamento.
Meus irmãos e eu não aguentamos a curiosidade e decidimos degustá-la no porão.
Especulamos que dentro havia um líquido mágico, capaz de fornecer sorte, riqueza ou imortalidade.
Afanamos o objeto de seu altar, o Santo Graal de nossas fantasias, e servimos um pouco para cada um nos copinhos Lagoinha. Tremíamos de medo.
Veio um gosto ruim, pastoso, melado, de um produto que excedera havia muito tempo sua data de validade. Experimentamos, cúmplices, uma hesitação entre cuspir e engolir. Já se fazia tarde para recuar.
Depois que provamos os goles pesados de vinagre, vieram o terror, a culpa, o enjoo.
Será que era a maçã do pecado em forma de bebida?
Passamos a noite mal, com cólicas e febre. A ressaca não se reduzia à parte física: atingia a alma, simbolicamente, consumando a perda da ingenuidade, num batismo do desencanto.
Crescer tinha o sabor amargo do fim das ilusões.
Minha avó umedecia a minha testa com um pano molhado e dizia:
— Meu neto, era só um enfeite. Era bom para os olhos.
Entendi que a bebida cumpria sua função de fascinar, sem finalidade.
Nem tudo precisa ser descerrado. Segredos também são bonitos.




