
Cada vez mais, nas redes sociais, testemunho expressões perigosas.
“Ser sustentada é um privilégio.”
“Trabalho é para quem não se casou bem.”
“Se um homem quer bancar tudo e me dar conforto, por que não?”
É o retorno da esposa-troféu à estante dos preconceitos.
A mulher passa a valer apenas pelo que representa ao lado do marido, não por quem ela é. Só conta como companhia. Só é considerada pela aparência. Sua função é decorativa.
Pelo menos, ao vender a alma ao diabo, haveria um comprador declarado.
É a passividade mais cruel da vida: ser sombra de quem não frutifica, jamais receber recompensa, jamais ser reconhecida.
Você não constrói nada que seja realmente seu — sequer na separação obterá ressarcimento moral. É um período de inércia pessoal que nunca terá estorno.
A principal qualidade exaltada nesse modelo? A discrição. Não responder, não opinar, aceitar tudo.
Embora pareça uma escolha consciente — parar de trabalhar, dedicar-se exclusivamente à família —, não se escolhe de fato. Você apenas se adapta. Escolha verdadeira implica respeito pelas diferenças.
Isto não é sobre dona do lar. Isto não é sobre quem decide cuidar dos filhos. É sobre estar num relacionamento sem amor, sem contrapartida, sem merecimento.
Você se afasta do seu círculo de afetos, da sua cidade, das suas referências, e não há como pedir socorro. É uma ilha padecendo de coordenadas. Não consegue se validar isoladamente. O que pensa, o que sente, o que deseja, requer agora a autorização de uma única fonte.
A relação é conveniência disfarçada de estabilidade. A que custo? Segue-se um pacto social para não incomodar, desfilar e desaparecer, sofrer em silêncio.
Você só existe fora de casa, para ser ostentada. O que faz na intimidade é esquecido. Você se vê sozinha, desprovida de méritos. Por uma ilusão de segurança, confere ao outro o poder de mentir felicidade.
A fachada pintada esconde as ruínas. Sem independência, não sobra admiração, prevalece a posse.
O que você não percebe é que está apenas substituindo um modelo antigo de submissão. Nem ocupa um posto singular. Repare: ele não cansa de falar da ex. Você ocupa um lugar emprestado.
Não há maior exploração do que ser o braço direito de alguém. É ter toda a personalidade reduzida a um braço. E, ainda por cima, de um corpo alheio. Não é elogio, é amputação. Você vira uma prótese.
Sujeição financeira pode desembocar em abuso psicológico, que pode resultar em feminicídio. O homem começa a se portar como dono do casamento, provedor da sua existência, e não concede o divórcio — nem qualquer mudança na convivência.
Conforme dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública (SSP), ao menos 11 mulheres foram assassinadas por questões de gênero no Rio Grande do Sul em abril. O número corresponde a um salto de 1.000% em comparação ao mesmo mês do ano passado.
E maio já desponta como uma repetição cruel de abril.
Em Três Coroas, no Vale do Paranhana, na segunda-feira (19), Juliana Mateus, 40 anos, foi morta a facadas. A mãe, Zilma Damiani Mateus, 68, buscou defendê-la e acabou ferida. O suspeito do crime é o ex-companheiro de Juliana.
O mais estarrecedor e triste: Juliana havia registrado boletim de ocorrência três dias antes, por ameaça, tentativa de asfixia e agressão com faca. Ela tinha medida protetiva de urgência desde sexta-feira (16). Não dispôs de tempo para ser protegida.
Os colecionadores de mulheres não admitem que o troféu saia da estante.