
A morte de 121 pessoas na operação do Rio reacendeu o debate sobre o tráfico de drogas. Mais uma vez, o foco recai sobre o traficante, como se ele fosse a única engrenagem desse mercado bilionário. O usuário, elo indispensável, segue protegido por uma blindagem moral. É um tema tabu, pouco abordado por autoridades, juristas, políticos, mídia e a sociedade em geral.
A narrativa dominante projeta o criminoso como figura total: produz, distribui, controla e consome. Como se movimentasse sozinho a economia clandestina que financia facções, reúne armas e corrompe o Poder Público. A realidade, no entanto, é mais incômoda: traficantes vendem porque há quem consuma. E quem consome não está majoritariamente nas favelas, mas em bairros nobres, festas universitárias, escritórios e lares discretos, protegido pelo manto da omissão institucional.
Por que esse lado permanece sob silêncio? Porque admitir o papel do consumidor implica olhar para dentro de casa. Culpar só o traficante é confortável: ele está distante. Já o usuário pode ser o filho, o colega, o amigo. Nessa equação, o fornecedor vira vilão absoluto — e o dependente, uma vítima abstrata. A repressão ao tráfico é importante e necessária, isso não se discute. O traficante é criminoso e como tal deve ser tratado. O problema é a conveniência moral de ignorar quem sustenta o mercado.
Nem de longe defendo criminalizar o dependente, mas é inevitável questionar a falta de responsabilização. As sanções previstas — cursos, prestação de serviços — raramente são fiscalizadas. Faltam vagas para tratamento, e campanhas de prevenção são raras. Quando você lembra da última grande mobilização antidrogas desenvolvida por qualquer governo? As verbas publicitárias rendem mais propagando obras e realizações. Garantem mais votos na eleição seguinte. Assim, bilhões de reais vão para repressão, enquanto programas de cuidado, reinserção e redução de danos seguem à míngua.
O resultado é previsível: facções se expandem, o consumo cresce, a violência aumenta. Enxuga-se gelo. Repete-se a fórmula fracassada que preserva o conforto coletivo de não discutir o papel de quem compra.
Enquanto a sociedade se recusar a assumir sua parte e não encarar as drogas também como problema de saúde e ordem econômica, o ciclo vicioso continuará. Sem enfrentar a demanda — com prevenção, tratamento e responsabilização — perderemos sempre. Enquanto o usuário for invisível, o tráfico continuará — e o poder das facções, também.



