As cidades precisam se adaptar para conviver com a água. Essa é a essência do conceito das cidades-esponja, criado pelo arquiteto chinês Kongjian Yu, que morreu na queda de um avião de pequeno porte no Pantanal do Mato Grosso do Sul, na noite da última terça-feira (23), aos 62 anos. Ele viajava com dois cineastas brasileiros para a gravação de um documentário.
A proposta desenvolvida por Yu busca transformar parques, praças e áreas verdes em estruturas capazes de absorver grandes volumes de chuva, funcionando como reservatórios naturais em períodos de cheia e garantindo água em tempos de seca.
No Brasil, o conceito ganhou maior atenção após a enchente histórica de 2024. Naquele maio, somente em Porto Alegre, foram registrados 539,9 milímetros de chuva, o maior volume mensal desde 1910, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Experiências desse tipo transformaram cidades como Jinhua e Taizhou, na China, que substituíram muros de concreto por parques ribeirinhos. Em Roterdã, na Holanda, praças esportivas foram adaptadas para se tornarem bacias de retenção.
— Isso pode se dar em jardins de chuva, pavimentos permeáveis, parques que acumulam temporariamente a água. É uma mudança de lógica, que permite reter e retardar o escoamento, em vez de apenas afastar a água — Carlos Eduardo Mesquita Pedone, arquiteto e conselheiro federal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS).
Reter e reutilizar a água
O conceito de cidade-esponja parte de uma ideia simples: as cidades precisam reter, infiltrar e reutilizar a água da chuva em vez de tentar expulsá-la rapidamente por meio de obras de concreto.
A lógica é transformar áreas impermeáveis em espaços de absorção, como se o tecido urbano funcionasse como uma esponja. Yu costumava resumir em três principais pilares:
- Reservar áreas agrícolas para açudes e solos permeáveis;
- Desacelerar o fluxo dos rios com vegetação e lagos;
- Criar zonas urbanas alagáveis, planejadas para receber a água sem causar destruição.
Entre as medidas, estão os parques alagáveis, que servem de lazer no dia a dia e de reservatórios em períodos de cheia; os telhados verdes, capazes de reduzir a pressão sobre os bueiros; os calçamentos permeáveis, que permitem infiltração da água; e as praças-piscina, desenhadas para acumular temporariamente grandes volumes de chuva.
— Hoje o modelo tradicional coleta a água nas sarjetas, joga para tubulações de concreto e sobrecarrega os rios. O conceito de cidade-esponja propõe o contrário: infiltração local, reaproveitamento e soluções baseadas na natureza — afirma Pedone.
As lições para o Rio Grande do Sul
Para o especialista, a lógica das cidades-esponja ajuda a entender por que Porto Alegre e a Região Metropolitana foram tão impactadas naquele período.
— O problema de Porto Alegre não foi apenas a chuva na Capital, mas o volume que veio da Serra, de cidades a montante. Se impermeabilizamos tudo lá em cima, a água desce com mais força e velocidade. O conceito de cidade-esponja precisa, portanto, começar no nascedouro — explica.
Por isso, segundo ele, pensar apenas em obras pontuais em Porto Alegre é insuficiente, visto que a lógica deve abranger toda a bacia hidrográfica que alimenta o Guaíba. Isso significa criar soluções desde o alto da Serra, em municípios como São Francisco de Paula e Caxias do Sul, até o ponto final de escoamento na Lagoa dos Patos.
— O ideal seria um grande plano para todo o Rio Grande do Sul, porque não adianta pensar só em Porto Alegre se toda a bacia hidrográfica contribui para o desaguamento no Guaíba— acrescenta Pedone.
Em fevereiro, o governador Eduardo Leite e o prefeito Sebastião Melo lideraram uma comitiva de mais de 20 integrantes em missão oficial à Holanda, país que transformou a convivência com a água em política de Estado após uma enchente que matou 1,8 mil pessoas em 1953.
— A gente precisa aprender sobre gestão das águas. É algo que os holandeses têm muito evoluído — destacou o secretário do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre, Germano Bremm, durante a viagem.
Já em agosto, Leite voltou ao tema em entrevista ao Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, ao defender o uso de áreas vulneráveis como instrumentos de contenção:
— Não basta simplesmente impedir que as pessoas construam lá. É fundamental que a gente transforme essas áreas em parques ou cidades-esponja e faça com que aquela região, uma vez alagada, não comprometa a vida das pessoas.
Por que o conceito pode ganhar força no Brasil?

O Brasil ainda aposta majoritariamente em soluções tradicionais de drenagem e estrutura cinza, como piscinões e canais de concreto. Esses modelos acumulam a água de forma passiva e, com o tempo, acabam se transformando em fontes de mau cheiro, acúmulo de lixo e problemas de manutenção.
— Ela é recolhida nas sarjetas de concreto, levada por tubulações e afastada das cidades até os rios. Assim, em vez de infiltrar localmente, nós só afastamos o problema — explica Pedone.
Na prática, medidas inspiradas no conceito de cidades-esponja poderiam envolver a criação de microbacias urbanas e jardins de chuva, entre outras soluções baseadas na natureza, organizadas em um sistema de infraestrutura verde.
Curitiba, no Paraná, é um exemplo de cidade brasileira que aplicou soluções semelhantes: sob a gestão do arquiteto Jaime Lerner (foi prefeito de 1971 a 1974, de 1979 a 1983 e de 1989 a 1993), parques urbanos foram projetados para atuar como reservatórios naturais durante os períodos de cheia.
— A capital paranaense criou um sistema que não é exatamente o conceito de cidade-esponja, mas que segue a mesma lógica. Há uma área de contenção das águas nos períodos de chuva, implementada ainda na época de Jaime Lerner, que pensou a cidade de forma integrada — explica Pedone.
O modelo defendido por Kongjian Yu, no entanto, propõe justamente uma transformação mais profunda: devolver espaço à natureza e fazer do ambiente urbano uma infraestrutura verde e azul.

Parques, canais naturais e jardins de chuva deixam de ser apenas áreas de lazer ou estética e passam a funcionar como barreiras naturais contra enchentes, ao mesmo tempo, em que oferecem qualidade de vida à população.
— O que trava uma implementação mais abrangente hoje é o modelo de desenvolvimento urbano que temos. Os planos diretores não preveem esse tipo de zoneamento, nem o redesenho das microbacias urbanas. É uma mudança que precisa ser incorporada — avalia Pedone.
Exemplos internacionais mostram que a adaptação é possível. Na Holanda, o programa Espaço para o Rio abriu áreas verdes para que os rios pudessem transbordar de forma controlada, reduzindo riscos sem depender apenas de diques.
— O Rio Grande do Sul já está em uma rota de chuvas intensas desde os anos 1950, e os eventos extremos tendem a se tornar o novo normal. Se não adaptarmos nossas cidades para infiltração local e soluções baseadas na natureza, vamos repetir tragédias — alerta.
Vinda ao Brasil
Poucos dias antes de falecer, entre 4 e 6 de setembro, Kongjian Yu esteve em Brasília para participar da Conferência Internacional CAU 2025. Na ocasião, apresentou exemplos de projetos na China e trouxe reflexões sobre as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul.
Durante a palestra, o arquiteto projetou mapas de Porto Alegre e citou como áreas vulneráveis a Orla do Guaíba, a Arena do Grêmio e o Aeroporto Salgado Filho. Para ele, o erro recorrente do planejamento urbano é ocupar de forma inadequada as bacias hidrográficas.
— Não se trata de ser ambientalista no sentido estrito, mas de integrar o ambiente à cidade com planejamento. Muitas vezes erramos: colocamos hospitais em áreas baixas, que acabam inundadas, enquanto parques ficam em locais altos. O correto é o inverso: parques nas bacias e prédios estratégicos em áreas elevadas — disse Yu no evento.
A presidente do CAU-BR, Patrícia Sarquis Herden, destacou a passagem do arquiteto pelo país:
— O Brasil teve a honra de receber Kongjian Yu na abertura da Conferência Internacional CAU 2025, onde compartilhou com milhares de profissionais sua visão transformadora para as cidades do futuro. Sua obra deixa um legado de compromisso com a sustentabilidade, a paisagem e a vida urbana. O CAU/BR se solidariza com a família, amigos e colegas do arquiteto — afirmou.
Quem foi Kongjian Yu

Kongjian Yu era reconhecido como uma das maiores referências da arquitetura paisagística contemporânea. Professor da Universidade de Pequim, doutor pela Universidade Harvard e fundador do escritório Turenscape, foi responsável por difundir mundialmente a lógica de soluções baseadas na natureza.
Sua produção acadêmica inclui mais de 20 livros e 300 artigos científicos, além de prêmios internacionais de peso, como o IFLA Sir Geoffrey Jellicoe Award (2020) e o RAIC International Prize (2025).
Nos últimos anos, vinha defendendo que o conceito de cidades-esponja deveria ser ampliado para bacias hidrográficas inteiras, e até para um "planeta-esponja", capaz de responder aos extremos climáticos globais.
A combinação entre prática e pesquisa tornou Yu consultor de governos e planejador de projetos que uniram urbanismo, paisagem e adaptação climática em mais de 70 cidades ao redor do mundo.
— A natureza se adapta, é viva. O conceito de cidade-esponja é baseado no princípio de que a natureza regula a água — disse ao Fantástico, em entrevista de 2024.
Quem eram as vítimas do acidente?
Além de Kongjian Yu, outras três pessoas morreram na queda da aeronave de pequeno porte em Aquidauana, no Pantanal de Mato Grosso do Sul. O piloto era Marcelo Pereira de Barros, morador da região e pai de dois filhos, com longa experiência em sobrevoos no Pantanal e na Serra da Bodoquena.
O cineasta Luiz Fernando Feres da Cunha Ferraz, diretor especializado em documentários e séries de não-ficção, também estava a bordo. Ele havia assinado produções exibidas em canais internacionais, como a série Dossiê Chapecó: O Jogo por Trás da Tragédia, indicada ao Emmy Internacional, além do documentário Paisagem Concreta, sobre o arquiteto português Álvaro Siza.
A quarta vítima foi o documentarista e diretor de fotografia Rubens Crispim Jr., formado em Artes Plásticas pela USP e com trabalhos para canais como Discovery, National Geographic e TV Globo. Ele também produziu filmes de arte e documentários exibidos em festivais no Brasil e no exterior.

Eles viajavam com o arquiteto e urbanista chinês. Os dois gravavam um documentário sobre o criador do conceito de cidades-esponja. Luiz Ferraz era sócio da Olé Produções. Em postagem nas redes sociais, a empresa confirmou as mortes e lamentou as perdas.



