
Rio Guaíba ou Lago Guaíba? O histórico debate porto-alegrense acabou na Justiça e caberá a uma juíza, após análise de argumentos científicos, definir a denominação oficial desse corpo d'água. A classificação julgada, mais do que encerrar uma polêmica, dirá se o perímetro em que não se pode construir, às margens do Guaíba, é de 30 metros ou 500 metros.
O mês de maio marca uma etapa crucial do processo: a de audiência pública para cientistas apontarem se o Guaíba é um rio, um lago ou um corpo d’água híbrido. O debate, aberto à sociedade, ocorrerá no auditório do Tribunal de Justiça, em 30 de maio, às 14h. A audiência foi determinada pela juíza, uma vez que o caso tem potencial de atingir grande número de pessoas.
O debate judicial, ao abrir espaço para os cientistas, acabará também por considerar as descobertas mais recentes sobre o Guaíba, após a enchente de 2024. O comportamento deste corpo d’água durante a cheia vem sendo analisado por estudiosos, ampliando o conhecimento das águas.
Decidir por “rio” pode ampliar a proteção e gerar demolições
Quem moveu a ação foram três entidades de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. O pedido é para que o Guaíba seja considerado um “curso d’água natural perene e intermitente”. Ou seja, um rio.
“Estes estudos (...) conduzem hoje a uma só e inequívoca conclusão: a de que o corpo hídrico Guaíba é um curso d’água natural e perene dadas as características que o definem, quais sejam, a existência de uma importante hidrodinâmica e hidrossedimentologia, a presença de canal, movimento sedimentar, movimento das correntes, existência de ondas, batimetria, magnetismo sedimentar, geofísica, toponímia, descarga líquida e sólida em suspensão, navegabilidade, dentre outros”, dizem os autores na abertura da ação.
O principal autor citado pelos ambientalistas para defender o Rio Guaíba é Elírio Ernestino Toldo Jr., professor do Centro de Pesquisas do Instituto de Geociências da UFRGS.
A busca pelo selo de rio para o Guaíba se dá porque, segundo a principal lei brasileira de meio ambiente, um curso d’água deste porte prevê que em suas margens haja até 500 metros de área de proteção permanente. Neste perímetro, em tese, se estabelece uma região non aedificandi, isto é, onde não se pode mais construir.
“A partir deste reconhecimento, as entidades autoras postulam (...) que este curso d’água possui uma faixa marginal com largura de 500 metros (...) qualificada como área non aedificandi”, diz outro trecho da ação movida pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Instituto Gaúcho De Estudos Ambientais (Ingá) e Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).
Uma eventual decisão em favor da classificação do Guaíba como um rio poderia gerar, também, a remoção de edificações já existentes e a paralisação de projetos em andamento. Na avaliação do advogado que representa as entidades ambientais, José Renato Barcelos, não há possibilidade de o reconhecimento de rio provocar a demolição em massa.
Os réus são o governo do Estado e as prefeituras de Porto Alegre, Viamão, Guaíba e Barra do Ribeiro.
Governo do Estado diz que Justiça deve se omitir por falta de consenso científico
Para o governo do Estado, o Guaíba é um lago e, nesta condição, deve ter 30 metros e não 500 metros de margens preservadas. Na defesa, o Estado admite que existe uma polêmica científica e que, nestas situações, deve prevalecer a decisão técnica ou política – sem intromissão da Justiça.
“Os órgãos públicos não podem ficar à mercê de mudanças de entendimentos acadêmicos para definição de suas políticas públicas. Não é correto que a cada (...) reavaliação científica atribua-se validade integral e aplicabilidade imediata a esses conceitos, inclusive de forma retroativa”, diz trecho da defesa feita pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE), órgão jurídico do governo.
Na mesma peça, o governo avalia que o pedido feito pelas entidades ambientais tem como objetivo a “demolição de todas as edificações existentes na faixa de 500 metros a partir da borda do Guaíba”, afirmando que isso “desafia os limites da boa fé processual”.
Em outra parte da defesa, o governo do Estado destaca que, mesmo que o Guaíba seja classificado como um rio, isso não necessariamente provocará a proteção integral das suas margens.
“Admitindo-se, por hipótese, que deva prevalecer a teoria científica que concluiu que o Guaíba seria um rio, deve-se destacar que em áreas onde a vegetação já restou suprimida não há que se falar em reconhecimento de Área de Preservação Permanente”, diz outro trecho da defesa.
O governo do Estado aponta ainda que, desde 1998, há consenso na comunidade científica de que o Guaíba é um lago e diz que o recurso natural sempre foi preservado pelo poder público:
“Mesmo antes dessa definição, nunca houve omissão do poder público na preservação desse ambiente natural”.
Prefeitura de Porto Alegre diz haver consenso sobre lago
A prefeitura mantém, na ação, a postura historicamente adotada pela administração municipal, isto é, de compreender o Guaíba como lago e, assim, permitir obras nas proximidades de suas margens. Para a Procuradoria-Geral do Município (PGM), há consenso científico acerca do Guaíba ser um lago.
“Neste ponto, é importante destacar que existe entendimento uníssono de que o Guaíba possui características de lago e não de rio, conforme se verifica no Atlas Ambiental de Porto Alegre (...), coordenado pelo professor Rualdo Menegat”, diz trecho da defesa municipal.
Na peça, a prefeitura lembra que os autores da ação pedem a suspensão de licenças e alvarás para edificações na faixa de 500 metros das margens do Guaíba e destaca os possíveis impactos econômicos negativos da medida.
“Essas suspensões de empreendimentos e alvarás ocasionarão grave impacto à cidade de Porto Alegre, afetando a economia, o desenvolvimento e a imagem do município, na medida em que ocasionaria a suspensão de inúmeros acordos e contratos previamente celebrados”, diz outro trecho.
Liminar negada, mérito em análise
A ação civil pública proposta pelas entidades está sob responsabilidade da juíza Patrícia Antunes Laydner, da Vara Regional do Meio Ambiente de Porto Alegre, que rejeitou os pedidos liminares das entidades ambientalistas e de direitos humanos.
Ao negar a liminar, a juíza destacou que, diante do cenário de enchentes do Guaíba, é preciso adotar uma postura “rigorosamente protetiva do meio ambiente”. Contudo, destacou a magistrada, “é imperativo considerar que tais municípios encontram-se atualmente em um processo ativo de recuperação e reconstrução” e que uma liminar tão extensa poderia comprometer a viabilidade econômica e “a própria recuperação urbana e social destes locais”.