
Marcada para novembro, em Belém, no Pará, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30) ocorre em um contexto de eventos extremos cada vez mais intensos e frequentes, o que amplia a urgência por ações que contemplem as mais variadas demandas globais. Seja entre os ribeirinhos da Amazônia e do Pantanal ou entre os atingidos pela enchente de maio de 2024 no Rio Grande do Sul, é consenso entre as comunidades mais afetadas por desastres ambientais que há muito a ser feito.
Para isso, elas precisam ser ouvidas, uma vez que, quando os mais impactados pelas mudanças climáticas ficam de fora da conversa, o problema não é só de representação: é de eficácia. Quem faz a ponderação é Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, sintetizando o conceito de justiça climática, pauta frequente entre diferentes entidades, que realizam campanhas nesse sentido como uma forma de preparação para a COP30.
Qualquer estratégia que exclui quem vive as bordas da crise falha também no centro.
NATALIE UNTERSTELL
Presidente do Instituto Talanoa
Maior fiscalização para evitar a contaminação da água e o desmatamento, redução da emissão dos gases de efeito estufa, ações de combate à seca e fortalecimento dos sistemas de contenção de cheias são algumas das demandas de diferentes regiões do país a serem levadas à conferência internacional.
No RS, enchentes
Do Rio Grande do Sul, a pauta se desenha sobre a maior enchente da história gaúcha, que devastou o Estado no ano passado. Em Porto Alegre, um dos bairros mais atingidos, o Sarandi, viu trechos do seu dique cederem diante da força da água. O sistema de proteção foi enfraquecido ao longo do tempo pela construção de moradias em cima e ao lado da estrutura.
Na área em cima do dique, no trecho onde a estrutura cedeu, o cenário é o de uma comunidade fantasma, com a maioria das moradias desmanchadas ou sem ninguém. Algumas poucas foram recuperadas e reabitadas. Na rua ao lado, há residências mais estruturadas, mas que, ainda assim, foram abandonadas, em sua maioria.
As principais reivindicações da população da região são o desassoreamento do Guaíba e, em especial, a restauração urgente dos diques.
Jarcedi de Araújo, líder comunitário do Sarandi, que atua na Associação de Moradores das Vilas Elizabeth e Parque (Amvep), espera que conferências internacionais como a COP30, que reúnem tantas autoridades de tantas nações diferentes, ajudem a aumentar a vontade política de investir financeiramente na resolução dos problemas no sistema de proteção contra as cheias.
Nós estamos em cima de um barril de pólvora. Precisamos da revitalização urgente dos diques que foram destruídos.
JARCEDI DE ARAÚJO
Líder comunitário do bairro Saran
A obra de elevação da contenção está sendo feita pela prefeitura, mas esbarra na necessidade de remoção de 57 famílias que moram ali. Destas, 36 assinaram o termo de demolição e deram início aos trâmites para o atendimento habitacional definitivo, por meio do programa federal Compra Assistida. A estimativa, contudo, é de que em torno de 1,5 mil famílias precisariam ser removidas para recompor todo o traçado da contenção. Ainda não há verba municipal ou federal suficiente para tudo.
Preparação de pauta unificada para a conferência
Sem saber se terão recursos para ir à COP30, entidades gaúchas ligadas a pautas ambientais planejam a realização de uma pré-COP. Ainda não há definição de data e formato, mas o evento será realizado junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A instituição também lançará um curso online, aberto e gratuito sobre a COP em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.
Uma das entidades envolvidas é a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). O grupo pretende, com a pré-COP, organizar um documento conjunto com as demandas dos ambientalistas da região, de forma a chegar a Belém com uma pauta mais unificada.
— Queremos ter uma ideia das necessidades aqui no Estado, por exemplo, de regeneração ecológica, com uma atenção muito grande à questão da justiça climática. Os que mais poluem são os que menos sofrem com a crise climática. Os países industrializados, que são os mais ricos, há muitas décadas têm emitido muito mais gases de efeito estufa. Aqui no Rio Grande do Sul, vimos que as populações vulneráveis, que são as que menos emitem gases de efeito estufa, são as mais predispostas a sofrerem com seus efeitos — exemplifica Heverton Lacerda, presidente da Agapan.
O ambientalista acredita que o Brasil pode ter um papel importante para pressionar países muito poluidores, como os europeus, os Estados Unidos, a Rússia e a China, a se responsabilizarem pelos gases que emitem e promoverem justiça climática.
A ambientalista Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, tem a expectativa de que a COP30 seja um “ponto de virada para um debate que una ciência, política e sociedade”.
— As mudanças climáticas são o espelho das desigualdades globais. A COP30 precisa ir além do protocolo e cobrar responsabilidade dos grandes emissores, mas também dos que lucram com a expansão de petróleo, gás e carvão. Justiça climática, nesse contexto, não é só proteger os mais vulneráveis, é desestabilizar a lógica que perpetua a crise — pontua Natalie.
Ela afirma que é irrelevante, para os atingidos pela crise climática, decidir se é mais importante investir em iniciativas de resiliência e proteção contra intempéries ou em ações contundentes de prevenção às mudanças climáticas: é preciso fazer ambos.
— A realidade é que precisamos das duas frentes, porque elas são inseparáveis. Mas o que se vê hoje é investimento em contenção de danos, enquanto seguimos autorizando novos poços de petróleo. Isso não é transição: é rendição. O que está em jogo não é só a realidade de comunidades amazônicas ou periféricas. Estamos falando de colapso sistêmico de modelos de desenvolvimento que ameaça todas as sociedades — denuncia a presidente do Talanoa.
No Pantanal, incêndios
A 1,7 mil quilômetros de Porto Alegre, a sul-mato-grossense Mahira Oliveira da Cruz, 30 anos, também viveu em 2024 o ano mais intenso no que diz respeito a desafios climáticos. Mãe de três crianças, ela acompanhou o incêndio no pantanal se alastrar e se aproximar perigosamente de sua casa, na comunidade indígena da Barra do São Lourenço, na Reserva da Serra do Amolar, que fica na divisa entre Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
— Não deu mais de 20 quilômetros de distância entre o fogo e a minha casa. Na área da morraria, estava pegando bem intenso. As pessoas mandavam mensagem o tempo todo, todo mundo muito apreensivo, em desespero. Por sorte, os brigadistas conseguiram controlar — recorda Mahira.
O marido, Ramão Lourenço, atuou como voluntário na luta para extinguir as chamas, assim como outras pessoas da comunidade. Mahira se ocupou de preparar refeições e alojamento para os brigadistas. A participação de moradores da região foi fundamental, pois eram eles que indicavam aos profissionais onde era possível passar e onde havia água para ajudar no combate ao fogo.

O período mais intenso dos incêndios durou mais de 15 dias, e Mahira, que trabalha na reserva, acredita eles estejam relacionados às mudanças climáticas. Ela gostaria que houvesse preocupação maior do poder público em promover educação ambiental, o que ajudaria a prevenir, por exemplo, atitudes que reduzam a emissão de gases de efeito estufa e a incidência de sinistros como o fogo no pantanal.
Às vezes, eles até chegam a alguma decisão (na COP), mas eu acho que faltaria a comunidade estar mais presente para cobrar e aprender com eles, porque nos falta voz. É difícil de irmos até eles. Se eles pudessem vir até nós, seria mais fácil.
MAHIRA OLIVEIRA DA CRUZ
Sul-mato-grossense que sofreu com os incêndios no Pantanal
Reunião de boas iniciativas que podem inspirar
Focado na preservação do pantanal, o Instituto do Homem Pantaneiro (IHP) faz a gestão de áreas protegidas como a Serra do Amolar, onde Mahira vive. Angelo Rabelo, fundador e presidente da entidade, destaca que não há excluídos no impacto das mudanças climáticas, que afetam a todos, ainda que em maior dimensão para alguns. Por esse motivo, avalia, um evento como a COP precisa ser utilizado para se alinhar estratégias globais que beneficiem a todos.
— O pantanal tem a maior área contínua úmida do mundo e vem enfrentando escassez hídrica: tivemos acima de 50% de escassez de redução do espelho d’água. O pantanal ficou muito próximo do ponto de inflexão (quando um determinado sistema socioecológico não é mais capaz de amortecer riscos e fornecer suas funções esperadas), porque é um bioma que tem uma relação de dependência da água — salienta Rabelo.
A redução da chuva tem sido percebida na região desde 2017. Depois de um 2024 aterrador, com milhões de hectares atingidos pelas queimadas, 2025 tem sido de volumes de chuva significativos que trazem alento. Em paralelo à ajuda do clima, o IHP tem acompanhado o desenvolvimento de políticas públicas na região.
— O Mato Grosso do Sul tem tido uma política bastante positiva. Poder público, setor produtivo e ONGs trabalharam em uma lei que trouxe o Fundo Clima, que traz recursos para apoiar financeiramente as brigadas voluntárias e proprietários rurais que adotarem boas práticas em reservas legais — cita o presidente do IHP.
A busca é pela neutralidade da emissão de gases de efeito estufa, algo que também tem sido perseguido pelo Mato Grosso.
— Se ações não forem consolidadas de maneira efetiva, seja na proteção de nascentes, incentivo a receitas alternativas que não impliquem desmatamento, recuperação e restauração das áreas que foram queimadas, a gente não vai conseguir manter a esperança em um futuro melhor — avalia o ambientalista.
Por lá, o IHP também participa de um grupo que organiza uma pré-COP para reunir, em um só documento, questões que preocupam a região e boas iniciativas que podem servir de inspiração para outras localidades do mundo. Conforme Rabelo, o reconhecimento financeiro por boas práticas, sejam do poder público ou da iniciativa privada, é uma das medidas que serão levadas à conferência, por viabilizarem que essas propostas sejam mantidas.
No Pará, seca
No Estado sede da COP30, Dulcicleia Oliveira de Castro, 54 anos, mais conhecida como dona Dulce, viu seu trabalho de uma década na região de Santarém esmorecer em 2024. A paraense possui um jardim de vitórias-régias na confluência dos rios Tapajós, Amazonas e Arapiuns, onde recebe turistas, que a visitam para apreciar a paisagem das plantas aquíferas e saborear os pratos elaborados pela anfitriã com o vegetal. Diante da maior seca dos últimos 50 anos, perdeu todo o seu plantio no ano passado.
— Agora, no meu lago, eu tenho dois troncos e nove mudas que estou começando. É um recomeço, né? Acredito que, em toda a nossa região, todos ficaram muito impactados com isso, mas aqui eu acredito que fui quem mais sofreu, porque o Canal do Jari, onde eu moro, só tem acesso pela água. Fechei em setembro de 2024 e só pude reabrir em fevereiro de 2025 — conta.
Hoje, como ainda não há vitórias-régias, poucos encaram a viagem de uma hora e meia de barco para chegar ao jardim da paraense.
A produtora julga que, nas COPs anteriores, “foi discutida muita coisa, mas essas coisas ficaram apenas na discussão”. Dona Dulce recebeu convites, mas não pretende ir à COP30, por acreditar que não teria voz por lá. Se tivesse o microfone à sua frente na conferência, porém, já sabe o que faria.
Pediria para desligarem o ar-condicionado. Se vamos falar de clima, vamos sentir na pele o quanto estamos sofrendo. Em segundo lugar, pediria que tivéssemos mais consciência, porque, sem ela, não vamos chegar a lugar nenhum e vamos piorar o nosso planeta para o futuro. Se já estamos sofrendo hoje, imagina daqui a 50 anos, para os nossos bisnetos.
A paraense pediria, ainda, mais respeito aos povos indígenas, amazônidas e nortistas, que ela sente que vivem isolados no país.
Busca por acesso de comunidades
O Instituto dos Ribeirinhos do Pará (Irpa) está instalado na região de Barcarena, cidade onde diferentes projetos de desenvolvimento econômico e indústrias de mineração, portos e exportação foram instalados. Desde que o município passou a receber mais dessas iniciativas, vem enfrentando uma série de desastres ambientais, como vazamento de rejeitos químicos, incêndios químicos e o naufrágio do navio Haidar, que, em 2015, afundou com 5,2 mil bois dentro. A emissão de gases de efeito estufa também é alta na região.
Paulo Feitosa, membro do Irpa, sente que ribeirinhos, quilombolas e indígenas têm pouco acesso à organização da COP30, algo restrito a “duas ou três comunidades”. Caso pudesse reivindicar, a entidade traria como demanda “um espaço mais aberto para a participação do povo nativo da região que vive nessas áreas” e mostraria o que tem acontecido por ali.
— Só aqui em Barcarena, já tivemos 29 desastres ambientais de grandes proporções nas nossas águas e pelo ar também. Isso contaminou o lençol freático e o ar de uma forma muito incisiva. Até hoje, temos efeitos nocivos e negativos das águas contaminadas que desceram para dentro do Rio Pará, e não temos a oportunidade de mostrar a esse povo da COP30 o que existe, para que tomem providências — critica Feitosa.
Diante da contaminação, o ribeirinho precisa buscar longe água para consumir, ou compra água em garrafas, o que impacta nas suas finanças. O banho ele ainda toma no rio, mesmo contaminado. Na geração de renda, o membro do instituto diz que a presença permanente de 200 a 300 navios ancorados dentro da baía, em pontos onde os ribeirinhos pescavam, acaba gerando a contaminação de frutos do mar e a redução das espécies encontradas pelos moradores para pescar. Com isso, a cultura da região tem se transformado “forçadamente”.