Iberê Camargo (1914 - 1994) era o homem-pintor, o artista da visão trágica do mundo, que fazia da tormenta interior a motivação de sua obra. Melancólico, às vezes sombrio, sentia-se condenado a pintar, como forma de adiar a morte. "O drama, trago-o na alma", disse.
As obras que o maior artista gaúcho deixou ao longo de 50 anos de produção são o testemunho existencial de uma entrega total à arte, de alguém que estava sempre a perseguir uma revelação arrebatadora.
Diante da tela, Iberê parecia um esgrimista em transe: dava violentas pinceladas, recuava para observar, avançava para sobrecarregar as espessas camadas de tinta, misturava tudo, borrava, modelava, raspava com espátula... Nesse embate incessante de construir e descontruir a imagem, chegava a rasgar a pintura e começar tudo de novo. "Nunca toquei a vida com a ponta dos dedos. No fundo, um quadro para mim é um gesto, o último gesto".
Pintor, gravador e desenhista, Iberê viveu a infância no interior do Rio Grande e a mocidade em Porto Alegre até se mudar para o Rio, nos anos 1940. Passou dois anos entre Roma e Paris e, na volta ao Brasil, consagrou-se como um dos mestres do expressionismo no país. E conquistou esse posto sem aderir a modismos, tendências ou grupos, seguindo um caminho solitário e sem concessões na arte brasileira.
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No momento em que se celebra seu centenário de nascimento, é possível tomar o indiscutível legado de sua produção e reconhecer nele permanência ou atualidade? Para a artista Regina Silveira, que foi aluna de Iberê, essa resposta passa pela transcendência alcançada por sua obra:
- Toda grande obra responde a seu tempo. Iberê é um artista moderno, e sua obra é uma resposta radical e apaixonada a seu contexto. Mas toda grande obra também tem a capacidade de ir mais longe, ser interpretada de múltiplas formas, fertilizar outras gerações e assim transcender seu tempo. Por isso, a obra de Iberê parece sempre nova e outra.
Regina, um dos nomes brasileiros de destaque fora do país, também reconhece na atitude artística de Iberê um modelo exemplar:
- Sua marca mais forte era o alto grau de exigência profissional, o rigor quase implacável. Mas sua lição maior é a paixão, o envolvimento praticamente compulsivo com seu trabalho.
O empenho e o compromisso de Iberê com sua obra influenciaram o artista Carlos Vergara. Quando jovem, em início de carreira, ele foi convidado por Iberê para ser seu assistente no Rio.
- Era um homem forte e radical em suas posições, e também amoroso, veemente e honesto. Falava que arte não se ensina: "O que eu faço é dividir contigo as verdades que vou descobrindo no trabalho". E sempre me dizia: "Guri, tu pode contar com uma coisa em relação a mim, e isto é importante: eu só te digo a verdade, e nesse nosso meio não é todo mundo que fala a verdade".
Mesmo quando Iberê deixou o Rio e voltou para Porto Alegre, em 1982, os dois mantiveram os laços. Encontraram-se pela última vez em 1993, no Centro da Capital. Desceram a Rua da Praia de braços dados para ver a exposição que Vergara montava na Casa de Cultura Mario Quintana. E fizeram planos. Combinaram de ir a Restinga Seca, terra natal de Iberê, para reencontrar as paisagens da infância. Mas não houve tempo, pois o mestre morreria no ano seguinte.
- Ele disse: "Tchê, tô fudido, essa doença tá me matando. Tô com tanta dor. Imagina um homem sem saliva". O tratamento contra o câncer estava pesado. Aí, eu disse: "Vamos pra Restinga, deixa que eu carrego tudo, como nos velhos tempos" - recorda.
A tão celebrada fase final de Iberê, com seus seres fantasmagóricos e cores sombrias em telas gigantes, foi realizada após seu retorno a Porto Alegre. Karin Lambrecht, integrante da geração de artistas surgida nos anos 1980, lembra do impacto da presença de Iberê no ambiente artístico local e da força das pinturas que estava fazendo:
- Nos domingos, visitávamos o Iberê, e ele recebia o pessoal no ateliê. A primeira impressão que tive foi de um homem frágil e delicado. E se imaginava o contrário. Todo o tormento das pinturas também estava dentro dele. Iberê tinha consciência de que iria morrer por causa do câncer. E lidava com a própria morte. Sua última fase é maravilhosa, porque ele se libertou do trabalho do passado e teve coragem de ir em frente com uma pintura nova. E assim foi muito coerente com sua obra.
O paulista Paulo Pasta, que integrou a retomada da pintura nos anos 1980, também destaca a coerência de Iberê:
- Toda a trajetória dele foi profícua e intensa. Estava sempre buscando algo, e cada encontro adquiria uma potência nova, um desdobramento novo. O trabalho do Iberê tem uma coerência incrível e rara entre os artistas no Brasil. Quando falo em coerência, é sobre esse artista que vive sempre procurando em si os motivos de sua arte.
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Jogo: qual das obras é assinada por Iberê Camargo?
Pasta, que já escreveu textos sobre a influência que Iberê exerceu sobre sua pintura, acredita que a postura dele, como um homem-pintor, ajudou a formar uma tradição no país.
- Quando conheci Iberê, disse a mim mesmo que tinha conhecido um pintor, alguém que tinha uma relação profunda com a arte. O peso simbólico daquela personalidade, o modo como se posicionava frente ao trabalho, a maneira como falava de pintura. O artista e o homem não estavam separados, e eu nunca tinha visto um pintor assim. Essa personalidade dá à pintura dele um caráter sólido e ético. Assim, Iberê oferece ao Brasil um pouco da história que nos falta. Ele foi um dos fundadores da tradição da grande pintura no país.
O crítico e historiador Michael Asbury, brasileiro que vive em Londres e foi curador de exposição na Fundação Iberê Camargo em 2013, vê a atualidade de Iberê na reinterpretação do modernismo no Brasil. E que sua relevância contemporânea pode ser investigada a partir dos pintores dos anos 1980.
- Iberê oferece uma oportunidade de nos voltarmos para a complexa implantação da arte moderna no país. Ele ocupa um papel fundamental dentro dessa história. É preciso ainda considerar o impacto que Iberê teve sobre as gerações subsequentes no Brasil, especialmente na pintura nos anos 1980. Nessa geração, há muitos artistas hoje consagrados nacional e internacionalmente.